Lar é só uma palavra ou é algo que você carrega dentro de si?
Esse é o questionamento apresentado logo no início do filme “Nomadland“, dirigido por Chloé Zhao. Candidato a seis premiações no Oscar 2021 e favorito a Melhor Filme, o longa conta a história dos nômades americanos – pessoas que passaram a viver em automóveis após a crise financeira de 2008.
Em formato de documentário semi-ficcional, o filme conta com apenas dois atores profissionais no elenco. Os demais são nômades reais que interpretam a si mesmos na obra, parte deles obrigados buscar trabalhos temporários em diferentes cidades e outros visando também um estilo de vida mais econômico, sustentável e livre. Eles vivem sobre rodas, explorando as estradas do país e também as conexões que fazem pelo caminho.
No Brasil, o paralelo quase sempre se afasta do romantismo. A região ao redor da Estação Brás, em São Paulo, é um exemplo. Os veículos estacionados pelo asfalto são casa para famílias e animais: uma alternativa para quem não consegue pagar o aluguel na cidade.
O pior naufrágio é não partir
Mas, como no filme de Zhao, há também os moradores de motorhome de espírito viajante, que encontram na vida nômade satisfação e liberdade. É o caso do casal Eduardo e Irene Passos, cujo espírito aventureiro surgiu depois que ele fez uma viagem de bicicleta de Salvador à João Pessoa. A paixão pela viagem permaneceu, mas Irene não se adaptou aos pedais e logo surgiu a cachorrinha Aloha em suas vidas. A solução encontrada? Viajar de kombi!
“Dormíamos dentro da Kombi, cozinhávamos, fazíamos tudo nela… era nossa casa mesmo. Quando não estávamos dentro dela, fazíamos passeios para conhecer o lugar. Levávamos bicicleta, stand up, prancha de surf no bagageiro”, conta Irene.
Uma das partes mais especiais dessa história é que a kombi foi montada por eles mesmos, desde os móveis até a parte elétrica. O automóvel possui bancos de Ford Ka na frente, uma caixa d’água de 50 litros, pia, tomadas, climatizador e frigobar (alimentados por uma placa solar que carrega uma bateria estacionária). Além disso, o motorhome conta com uma cama que vira sofá e alguns armários feitos de madeira.
“O dia a dia na kombi é parecido como morar em uma casa normal, sendo que a cada dia a vista da janela é outra. Só não se tem os ‘luxos’ que hoje em dia se tornaram necessidade para muitos. No nosso caso, não existiram grandes dificuldades, pois a vontade de viver aquela experiência era maior”, conta Irene.
Quem busca este estilo de vida, no entanto, precisa se preparar para alguns desafios. No caso de Eduardo e Irene, o maior deles era suportar altas temperaturas durante o dia e ficar em pé. “É preciso, antes de mais nada, querer. Se não tiver coragem de se jogar, não adianta ter um motorhome. Conhecemos várias pessoas na estrada que praticamente não tinham nem o que chamamos de básico – fogão e cama – e que viviam super bem”, aconselha o casal.
“Em nossa opinião, deve-se existir o desapego à sua rotina convencional, às facilidades de se viver em uma casa e ao conceito formulado de insegurança que a maior parte da mídia nos impõe. É preciso ter a coragem de dar o primeiro passo. O pior naufrágio é não partir, disse Amyr Klink”.
Eduardo e Irene tinham a intenção de continuar a viagem na kombi, carinhosamente chamada de Dona Dalva, mas, com a pandemia, precisaram fincar raízes. Depois de um ano morando sobre rodas, eles encontraram um lindo lugar em Itacaré, no sul da Bahia, e construíram uma casa em meio à Mata Atlântica. Hoje o veículo é utilizado como meio de transporte e viagens para praias.
Caminhos cruzados
Antonio Olinto e Rafaela Asprino são daquelas pessoas que todos pensam: “eles precisavam se conhecer”. Ele já havia viajado por quatro continentes de bicicleta durante os anos 1990; ela amava pedalar e viajar sozinha. Em 2007 os destinos se cruzaram, quando uma amiga em comum os apresentou porque Antonio mapeava um circuito que Rafaela já havia percorrido: o Caminho da Fé. Foi o início de uma vida de viagens, parceria e liberdade.
A essa altura, Antonio já havia morado dentro de uma Camper Tahiti montada sobre uma F1000 e agora morava em um Invel. Para além dos moradores, o motorhome foi casa para o início do Projeto de Cicloturismo da dupla, que consiste em fazer mapeamentos e guias de cicloturismo Brasil afora e cuja venda é a fonte de renda deles dois.
Auto-suficiente – com fogão de duas bocas, forno, chuveiro quente, privada porta pott, máquina de lavar, inversor e painel solar – o Invel se tornou pequeno depois que Antonio e Rafaela aumentaram a produção de livros, guias e documentários. Sabendo que precisavam trocar de veículos, eles optaram por um furgão Agrale, mais robusto, com um sistema mecânico mais simples e tamanho relativamente pequeno em relação a outras vans.
Como já haviam tido a experiência de morar sobre rodas anteriormente, eles já sabiam o que queriam para a próxima morada. E o projeto quem fez foi a própria Rafaela, formada em arquitetura.
“Com o carro em mãos, identificamos as estruturas do veículo onde deveria ser apoiada a montagem, assim definimos limitações e possibilidades. Desenhamos as proporções dos espaços desejados em escala 1:1 no piso do veículo, e por vezes até utilizamos papelões para simular as paredes e espaços vazios. Dessa forma ajustamos e definimos cada centímetro no projeto, sempre levando em conta a ergonomia. Demoramos cerca de 6 meses entre projeto e construção do motorhome, que também foi feita por nós, desde funilaria, instalações elétrica, hidráulica, paredes, forro, estofados, pintura, isolamento térmico”, conta ela.
Para eles, era importante considerar a funcionalidade, conforto e peso dos materiais, para que o veículo não fique muito pesado. Além disso, a autonomia do veículo no que diz respeito à água e energia também era fundamental. Hoje, o Agrale conta com cozinha (com fogão e geladeira), sala de jantar, quarto e cama, banheiro completo (com chuveiro elétrico), máquina de lavar, espaços de armazenamento e muito mais.
“Só deixamos de morar no motorhome quando passamos a morar na barraca para fazer aventuras de bicicleta em outros países”, conta Rafaela. Hoje o casal já soma incontáveis viagens dentro e fora do Brasil e tem carinho por cada um deles: “Cada lugar tem algo especial e marcante. Podemos dizer que lugares não reconhecidos pelo turismo de massa são nossos preferidos, pois mantém mais originais a cultura, o modo de viver e a natureza. Dessa forma, sempre podemos aprender mais”.
A casa é pequena, mas o quintal é grande
Como Eduardo e Irene, Antonio e Rafaela também acreditam que, quem quer seguir este estilo de vida, deve estar disposto a algumas renúncias. “Acreditamos que deve haver uma mudança de valores, como dizem, ‘a casa é pequena, mas o quintal é grande'”, dizem.
Eles afirmam não pensar em voltar a morar em casas tradicionais e que as próximas viagens serão sobre duas rodas: “Nossa intenção é, assim que essa situação se resolver, sair para uma grande viagem de bicicleta. Mas por hora trabalhamos nossa ansiedade para conseguirmos nos equilibrar e realizar atividades que estejam de acordo com o isolamento social“.
Apenas um rapaz latinoamericano com uma bicicleta
Beto Ambrósio é fã de carteirinha de Antonio e Rafaela. Fotógrafo formado em administração de empresas, o maior sonho de sua vida era fazer grandes viagens de bicicleta. A realização começou quando, certo dia, o dono de uma marca esportiva comprou a ideia de Beto e disse que o patrocinaria em uma viagem pela América Latina.
“Eu trabalhava em um café. Um dia, levei o livro de um cara que deu a volta pela América Latina de bicicleta nos anos 2000. Estava lendo e entrou o Tadeu, o cara que mudou a minha vida. Ele queria dar visibilidade à marca. Sabia que eu tinha feito duas viagens de bicicleta pelo Nordeste, virou para mim e disse ‘Roberto, vamos armar um projeto, você faz uma viagem pela América latina e eu te patrocino'”. Não dá nem para explicar o que eu senti. Sete meses depois dessa conversa, em 2012, eu saí para viajar. Usei esses meses para fazer o planejamento, tracei a rota, comprei equipamento e fui embora”, conta.
Sem saber falar nada de espanhol, Beto se jogou nos países hispanohablantes e viajou durante quase 3 anos. “O que eu mais gostei de viver foi a sensação de maior liberdade que eu senti na minha vida, de olhar para bicicleta e ver que ali tinha tudo o que eu precisava para viver. A sensação da leveza, da liberdade, do desapego, da falta de preocupação, a vida muito leve em todos os aspectos”, diz ele.
Depois de retornar ao Brasil, Beto decidiu escrever um livro, chamado Fé Latina, com as histórias que viveu e as paisagens que fotografou. Juntou dinheiro e comprou uma kombi para que pudesse expor e vender seus artigos em feiras de São Paulo, mas também para se divertir.
“Apareceu uma kombi maravilhosa, já tinha cama, geladeira e climatizador. Só não tinha banheiro, mas tinha quase tudo. E é meu sonho morar num motorhome, sempre foi meu sonho. Comprei”, disse. Mas Beto acabou ficando apenas um ano e meio com a kombi, devido à pandemia, e a sorteou entre os seus seguidores no Instagram.
Ele havia feito viagens a praias e camping antes disso, usando o motorhome como casa e meio de transporte. E sonha em um dia voltar a esse estilo de vida: “Se um dia eu tiver, eu penso em morar um tempo. Eu gostaria de viver essa experiência de morar num carro e ter uma vida simples, sustentável, barata, econômica. A vida fica mais leve quando se carrega menos coisa”, diz.
“Quando eu penso no motorhome, eu não penso tanto em viajar o mundo com ele porque é mais complicado cruzar o oceano. A minha ideia é estar com ele por aqui, pelo Brasil, Sudeste e Sul. De vez em quando, obviamente, fazer umas viagens para o Nordeste, ir para Minas. Mas usar o motorhome como um estilo de vida, como uma casinha para morar. Eu quero muito conhecer o mundo de bicicleta, então eu poderia deixar meu motorhome estacionado e ir lá para a Ásia, depois voltar e morar no motorhome. É assim que eu visualizo”, completa Beto.