Rubem Alves: Emissários dos deuses para nós

Sonhos não se interpretam. É melhor recebê-los como presentes que são, vindos de algum lugar para além da gente. Eles vêm numa revoada, pousam tranquilos e, assim, se deixam conhecer

Por Rubem Alves
Atualizado em 21 dez 2016, 00h02 - Publicado em 4 abr 2013, 16h31
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Desde menino as borboletas me encantam. E acho que elas gostam de mim. Certa vez, na casa do Brandão, em Pocinhos do Rio Verde, uma borboleta assentou-se no meu rosto e lá ficou tranquila. Não me mexi com medo de assustá-la. Ela ficou tanto tempo no meu rosto que deu tempo para o Brandão ir buscar sua câmera e tirar uma foto.

Penso que borboletas, seres alados, diáfanos e coloridos, devem bem ser emissários dos deuses, anjos que anunciam coisas do amor. Imaginei, então, que aquela borboleta deveria ser um anjo disfarçado que os deuses me enviavam com uma promessa de felicidade.

O imaginário mítico e poético sempre gostou de borboletas. Os gregos, por exemplo, imaginavam a alma como uma borboleta com corpo de menina. E o grande português Fernando Pessoa dedicou-lhe um maravilhoso poema, Eros e Psique.

Cecília Meireles também brincou com elas, num de seus poemas em que colocou uma pequenina borboleta equilibrando a pesadíssima grandeza cósmica:

“No mistério do Sem-Fim

equilibra-se um planeta.

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No planeta, um jardim.

No jardim, um canteiro.

No canteiro, uma violeta.

E na violeta, entre o mistério

do Sem-Fim e o planeta,

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a asa de uma borboleta.”

Podem imaginar isso, que uma borboleta, com suas levíssimas asas, possa equilibrar um planeta? E numa cena de Sonhos, filme de Akira Kurosawa, há uma impressionante revoada de milhares, milhões de borboletas.

Isso aconteceu faz muitos anos. A cena da borboleta pousada no meu rosto estava em algum lugar de mim no esquecimento. Aí eu sonhei e a cena se tornou viva de novo.

Os sonhos são um mundo mágico. No mundo dos sonhos não há nem antes e nem depois e nem lá e nem aqui. Tempo e espaço se misturam.

Aí, sonhando, ouvi o cantarolar de uma valsinha velha de que ninguém mais se lembra. Era só um cantarolar, sem palavras. Depois de acordar fui ao Google e lá estava ela:

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“Certa manhã/

Destas manhãs cheias de luz

Por entre as rosas do jardim/

Eu vi passar

Gentil borboleta/

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De asas azuis

E o seu vôo incerto/

Me fez pensar

Que os namorados/

Que passeiam por aí

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São borboletas que a voar/

De flor em flor

Procuram daqui/

E procuram dali

Encontrar um novo amor/

Voa minha linda borboleta/

Voa pois a vida é tão boa/

Quando se tem/

Um amor no coração…”

Sonhei com a borboleta que pousara no meu rosto. Mas de repente ela bateu as asas e voou em meio às árvores da mata. Corri atrás, mas ela era mais rápida do que eu.

A cena se alterou. A borboleta estava agora num shopping, voando, voando, e entrou numa joalheria. Fiquei confuso diante de tantas jóias nas vitrines, até que vi a borboleta pousada num fino cordão de ouro. Mas, imaginem, foi só eu tocá-la para que ela se transformasse numa borboleta de vidro, as asas feitas com atraentes pedras coloridas.

Fiquei triste com essa transformação porque eu preferia a borboleta viva, aquela que se assentava no meu rosto. De qualquer maneira, resolvi comprá-la: era uma jóia que eu poderia dar a alguém que se parecesse com a minha borboleta.

Pus a borboleta de pedras coloridas no bolso e me fui. Mas aí aconteceu o que eu não imaginara: como no filme de Kurosawa, milhares e milhares de borboletas começaram a sair do meu bolso e encheram de cores o espaço do shopping. E foi em meio a esse total encantamento onírico que uma das borboletas não voou. Ela se assentou sobre o meu rosto e ali ficou…

Aí eu acordei…

Rubem Alves nasceu no interior de Minas Gerais e é escritor, pedagogo, teólogo e psicanalista.

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