“Inspiração é murmúrio de fonte divina”, defende Adélia Prado

A mineira Adélia Prado, uma das mais importantes poetas da literatura nacional, compartilha aqui sua percepção de mundo impregnada de religiosidade.

Por Texto: Raphaella de Campos Mello | Ilustração: Gustavo Duarte
Atualizado em 20 dez 2016, 21h06 - Publicado em 16 abr 2014, 18h20
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Numa quinta-feira úmida e cinza, fui à Biblioteca de São Paulo, na zona norte da capital paulista, encontrar-me com a escritora Adélia Prado. Não, ela não estava à minha espera. Vive, desde 1935, ano de seu nascimento, em Divinópolis, escondida no interior das Minas Gerais – refúgio perfeito para quem se reserva o direito de criar às margens dos holofotes literários. Sabendo desse pormenor e correndo o risco de não conseguir esta entrevista, ainda que por e-mail, dado o resguardo de Adélia, quis esparramar seus livros sobre a mesa e buscar alguma proximidade onde me era mais possível. Não leva muito tempo para entender por que seu conterrâneo Carlos Drummond de Andrade escolheu as seguintes palavras para defini-la: “Adélia é lírica, bíblica, existencial, faz poesia como faz bom tempo”. Drummond foi responsável pela indicação que resultou na estreia da novata, em 1976, com a coletânea de poesias intitulada Bagagem. Na época, a debutante tinha 40 anos e era mãe de cinco filhos. Segue um bocadinho dessa boa-nova revelada ao mundo pelo grande poeta: “Louvado seja Deus meu senhor, porque o meu coração está cortado a lâmina, mas sorrio no espelho ao que, à revelia de tudo, se promete”. Assim como o literato mineiro, outros cânones festejaram o nascimento literário de Adélia. Em sua primeiríssima sessão de autógrafos, no Rio de Janeiro, ela reuniu sob o mesmo teto uma bancada de elite formada por Antônio Houaiss, Clarice Lispector, Juscelino Kubitschek, Affonso Romano de Sant’Anna e Nélida Piñon. Para poucos.

A densidade que embasbacou críticos e colegas se deve, entre outros motivos, ao fato de que a criação poética toca, por meio da pena dessa mineira, em pontos comuns à experiência religiosa. Não o delírio metafísico, e sim epifanias fincadas no chão do cotidiano mais ordinário. Tanto seus versos quanto sua prosa se abastecem da fé embebida no catolicismo. Novenas, salmos, louvores e súplicas endereçadas ora ao Senhor e sua Virgem Mãe, ora aos santos católicos, todos eles próximos, como se de carne fossem e andassem pela casa, perpassam a rotina. Logo ali surgem o dia a dia da casa, a visita da comadre, a parente enferma, a tangerina descascada no quintal. Adélia alinhava sua lida diária, os filhos, os netos, o envelhecimento, com a pergunta fundamental: de onde vim, para onde vou? E por trás de tudo descobre e revela o principal. Por trás das flores, mostra que há mais do que cor, cheiro e serventia para um chá. Há o inexplicável, uma nova realidade que é o espiritual. O sagrado e o comezinho se complementam, assim, na vida e na obra da escritora, que busca no Alto consolo, estofo e esperança ante a insuficiência do humano. Condição, aos olhos daquela que crê, vigiada pela onipotência do Supremo, temática recorrente em seus escritos.

Tem sido assim desde o princípio. Diversos volumes de poesia, prosa e, mais tardiamente, literatura infantil preencheram as últimas décadas. E agora, três anos após sua última coletânea de poemas, A Duração do Dia, a autora regressa à poesia com Miserere (ed. Record), lançado no final de dezembro. Entre, a seguir, na estrada de fé por onde caminha, em paz com o tempo, uma das mais queridas poetas da literatura brasileira.

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Em que momento a senhora consegue “tocar” em Deus ou ouvi-lo? O que Ele costuma lhe mostrar ou dizer?

Essa pergunta só poderia respondê-la um místico, que tem a graça de uma experiência muito especial. Eu sou como 99% da humanidade, apenas uma seguidora que se empenha em viver segundo sua fé. Mas não duvido de que na poesia o que chamamos inspiração é murmúrio de fonte divina. E tem ainda a consciência, onde Ele fala a toda criatura humana.

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A senhora recorre com mais frequência ao Pai, ao Filho, ao Espírito Santo, à Virgem Maria ou a algum santo predileto?

Costumamos herdar devoções de nossos pais, nossa família. Foi assim comigo. Os santos, muito mais próximos de nossas misérias, são constantemente invocados como intercessores. Quanto à Trindade, é Jesus, o Filho de Deus encarnado. A Virgem Maria por ser nossa mãe e mãe de Deus. Ter uma mãe assim e poder gozar de seu colo é indizível felicidade. Há santos especiais para mim também: três Antônios, uma Tereza, uma Teresinha e um Francisco.

Que aspecto da religiosidade mineira considera mais belo e por quê?

O aspecto de reverência com o sagrado. É muito bonito esse comportamento de criatura diante do seu criador.

A senhora segue rituais ou entoa orações cotidianamente?

Orações sim. Rituais nos tempos litúrgicos e também alguns domésticos, de família. Sua literatura se abastece desse contato com o divino?

Toda arte nasce não do poder do artista, de sua crença ou ateísmo, mas de um dom e se é dom há que ter um doador. Para mim, divino.

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A senhora acredita em transcendência por meio da poesia?

A poesia, a mais ínfima, é serva da esperança e esperança é transcendência. É a grandeza das pequenas coisas, o que não se corrompe. Podemos dizer, então, que o elo estabelecido entre escritor e leitor é um tipo de pacto religioso? É pacto afetivo, estético, de reconhecimento mútuo tipo “alma irmã”.

Ainda sobre o ofício de criar estórias, personagens, reconstituir sentimentos e sensações… tudo isso é um caminho para se lapidar a espiritualidade?

A finalidade da arte não é e nem pode ser ideológica, filosófica ou religiosa, porque sua única função – não acho outra palavra – é expressar a beleza. Acontece que, quando a expressa através do religioso, consola o crente, dá alegria. Ou pode causar aversões, antipatias profundas e, quem sabe, ódio do não crente.

Para quem vive no turbilhão da cidade, a vida no interior parece imantada por uma aura superior. É o caso de Divinópolis?

A aura de Divinópolis por enquanto está em seu nome e sua vocação entranhada nele: cidade do divino. É uma cidade de médio porte com as mazelas previsíveis. A parte de Divinópolis que “conversa” comigo diz respeito a ferrovia, locomotivas, oficinas, apitos, trens de carga e de passageiros, da camisa de meu pai cheirando a limalha de ferro. O Santuário de Santo Antônio que nasceu no ano do meu nascimento (1935) é o meu lugar especial. Onde meus pais, ancestrais, todos os meus queridos rezaram e confiaram, buscaram consolação e sentido, onde habita beleza litúrgica e a visão franciscana da vida.

Qual é, na sua opinião, a maior prova de fé que um ser humano pode atestar a si mesmo?

Entregar-se como criatura nas mãos do Criador.

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O que Adélia Prado, mãe de cinco flhos, tem a dizer sobre o amor incondicional?

Tendo cinco ou nenhum, o amor incondicional é a qualidade do amor a que todos somos chamados a viver.

Como a senhora encara a perspectiva da finitude?

Com temor, tremor, esperança e fé na misericórdia divina com a minha fraqueza.

O que nos “salva da vida é a vida mesma”, como no poema Agora, Ó José?

O que falei melhor já está no poema (…O que tu sentes, José? / O que te salva da vida/ é a vida mesma, ó José, / e o que sobre ela está escrito/ a rogo de tua fé: / “No meio do caminho tinha uma pedra” / “Tu és pedra e sobre esta pedra”. / A pedra, ó José, a pedra. / Resiste, ó José. Deita, José, dorme com tua mulher, / gira a aldraba de ferro pesadíssima. / O reino do céu é semelhante a um homem / como você, José.).

Por favor, complete a sentença: “estado de graça é…”?

Estado de graça é a confiança no amor de Deus por mim, por toda a criação.

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