*Matéria publicada em Bons Fluidos #167 – Fevereiro de 2013
Janaína, Oloxum, Oguntê, Inaiê, Sobá, Dandalunda, Princesa de Aiocá, Mucunã, Maria… Dona Iemanjá tem todos esses nomes, e mais outros. Ela é uma e é muitas. Deusa das Sereias para uns e das Ondinas para outros. Braços sempre abertos, como toda boa mãe, ela recebe os filhos, canta para cuidar deles, alimenta, protege. Inspira poetas e compositores. Dorival Caymmi quis ser o primeiro a saudá-la em sua canção Dois de Fevereiro. Na Baía de Todos os Santos, onde na data acontece a festa mais conhecida em homenagem a ela – numa tradição que começou em 1923, quando um grupo de pescadores resolveu oferecer presentes à Mãe das Águas, pois os peixes estavam escassos no mar –, cada grão de areia é banhado nessa fé! Levantamento da Bahiatursa, empresa vinculada à Secretaria de Turismo do estado, mostra que cerca de 500 mil pessoas participaram da festa em 2012. Gilberto Gil, como ninguém, resumiu há tempos o sentimento que para o baiano não costuma falhar: “A Bahia que vive pra dizer como é que se faz pra viver, onde a gente não tem pra comer, mas de fome não morre. Porque na Bahia tem mãe Iemanjá e de outro lado o Senhor do Bonfim, que ajuda o baiano a viver pra cantar, pra sambar pra valer, pra morrer de alegria na festa de rua, no samba de roda, na noite de lua, no canto do mar”.
Sincretismo religioso
Sincretizada com Nossa Senhora dos Navegantes, na Bahia e no Rio Grande do Sul; da Conceição, em São Paulo; e da Glória, no Rio de Janeiro, a Senhora das Águas gera um sentimento de devoção que se espalha por todo o país. É uma saudação ao mar que banha toda a costa brasileira, além de uma homenagem à poderosa sereia. De acordo com organizações culturais afro-brasileiras, até 70 milhões de pessoas participam regular ou ocasionalmente de festas do candomblé como a de Iemanjá, considerada a mais popular entre todas.
A celebração transcende a fronteira das crenças religiosas e é parte da cultura brasileira. Na virada do ano, centenas de milhares de pessoas vão para a beira das praias levar suas oferendas. Em Copacabana, por exemplo, os rituais de homenagens à Rainha do Mar não distinguem a orla da zona sul carioca dos terreiros de candomblé e umbanda pelo país afora. “Ela representa o feminino e a concepção de que toda mulher, no fundo, é mãe – independentemente de ter filho –, pois traz na sua essência o olhar, o sentimento do cuidar. No imaginário dos homens, Iemanjá é a mulher brasileira, bela e forte, e com um jeito especial e único de tocar em frente a vida”, descreve a antropóloga e professora Maria das Graças de Santana Rodrigué, doutora em ciências da religião e especialista em orixás, da Bahia.
Em iorubá, língua usada em muitos ritos religiosos, ieiê ama ejá significa mãe cujos filhos são peixes. Ela é mítica e mística, segundo Maria das Graças. É a deusa e é o sobrenatural. Há ainda uma analogia com a mulher, que tem “poderes” sobre a vida uma vez que tem o dom de gerá-la, e ao mesmo tempo manifesta sentimentos complexos. É generosa e calma, mas sabe ser astuta e severa. Da mesma forma que preza os filhos que andam na lei e para eles tudo dá, quando necessário, os leva para o fundo do mar. “Segundo as religiões e as tradições africanas, Iemanjá transmite harmonia com o movimento redondo e ondulatório das águas do mar e do rio. Mesma harmonia que é transmitida pela mulher, por meio do líquido na vida intrauterina”, compara a antropóloga. A psicanalista Danit Zeava Falbel Pondé, de São Paulo, acrescenta: “Grande mãe, ela é a responsável pelo ori, a consciência de todos nós. Isso a torna um orixá importantíssimo. Cada pessoa que se inicia, antes de prestar homenagem ao seu santo designado, a reverencia”.
Diz a lenda
Uma das histórias do candomblé fala que Oxalá, marido da Senhora das Águas, foi escolhido por Olorum, o deus supremo dos orixás, para ser o grande criador do mundo. Recebeu dele o saco da criação e a ordem de prestar homenagem a Exu, mensageiro entre o mundo dos homens e o dos orixás. Ao faltar com a incumbência, Oxalá acabou se dando mal, e perdeu o saco da criação para o irmão invejoso. Depois de repreendê-lo pelo pouco caso, Olorum lhe deu uma segunda chance e o poder de criar o homem. Iemanjá, vendo a glória do parceiro, ficou enciumada e o atormentou tanto que ele caiu enlouquecido. Ao ver seu amor prostrado, ela se arrependeu e passou a cuidar dele. Com total devoção deu banhos, o alimentou, cantou para trazê-lo de volta à razão. E, por ter cuidado tão bem do amado, Olorum a premiou, incumbindo-a de manter o equilíbrio emocional e mental dos seres humanos.
Orixá em família
“Na obra de meu pai, Jorge Amado, o casal Manoel e Maria Clara está muito presente. Ele é mestre de saveiros e ela, filha de Iemanjá. Essa presença é expressiva em Mar Morto [romance sobre Guma, que, como todo pescador, acredita que seu destino é um dia morrer no mar. Eu diria que em todos os romances onde a pesca e o Recôncavo se destacam, Iemanjá é personagem de peso. Papai era filho de Oxóssi [orixá caçador, ligado às florestas], mamãe, de Oxum [que representa a água doce, a força dos rios]. Meu irmão, João Jorge, um Xangô sedutor [o senhor dos raios e do fogo]. E eu, filha amantíssima da Senhora das Águas, por ela tão querida, assim como minha filha, Cecília. Capitães da Areia, filme dirigido por ela, começa e termina na festa de 2 de Fevereiro. A fé que move os filhos e a alegria em agradar à mãe contagia a todos. Enquanto minha avó Lalu, mãe de papai, foi viva, a Casa do Rio Vermelho esteve aberta, com baianas fritando acarajés desde as 8 da manhã até o início da madrugada. Era o aniversário da matriarca, ela também uma filha de Iemanjá.” Paloma Amado
Iemanjá no subconsciente
“Ela mora no mar, ela brinca na areia, no balanço das ondas, a paz ela semeia”…, diz a canção. “O mar representa o inconsciente, muito bem descrito na teoria de Carl Jung. Essa simbologia se refere mais ao inconsciente coletivo. Em termos de compartilhamento de experiência cultural nesse balaio que forma o Brasil, combina muito bem. Mesmo porque, os africanos, primeiros escravos, como não podiam rezar para Iemanjá, rezavam para Nossa Senhora”, lembra a psicanalista Danit Zeava Falbel Pondé, acrescentando que os ritos que fazemos no fim do ano, com rosas brancas e velas, remetem a limpeza, renovação, equilíbrio emocional e força para poder enfrentar os desafios da vida. “O mar purifica e é esse outro importante aspecto de Iemanjá. Ela leva para o mar as coisas ruins e traz as coisas boas com as ondas.” Nascida numa família judaica, Danit se considera hoje uma judia do candomblé: “Por problemas pessoais, fui levada a um terreiro de candomblé. Assim que entrei, me identifiquei. Comecei a frequentá-lo em busca de tratamento, mas acabei me iniciando e hoje carrego Iemanjá na minha vida. Ela é um dos meus santos. Em paralelo, continuo vivendo as tradições judaicas da família, falo hebraico, comemoro as datas. Sou uma religiosa”, conclui. Como defende Reginaldo Prandi, sociólogo e pesquisador da Universidade de São Paulo, a participação das religiões africanas é importante não apenas pelo contingente que abrange como também pelo valor nas artes, na culinária e na sua especial maneira de ver o mundo.
Ouvir, ler e ver Iemanjá
Cantada em verso e prosa, a Rainha do Mar compôs o cenário de histórias na literatura e no cinema. Para entender um pouco mais do universo africano, berço de Iemanjá e dos orixás do candomblé, mergulhe no roteiro a seguir.
Para ouvir:
Dorival Caymmi cantou a alma baiana para Brasil e o mundo. Algumas belíssimas canções: É Doce Morrer no Mar, O Bem do Mar e Caminhos do Mar. De Vinicius de Moraes: Maria Vai com as Outras, A Bênção, Bahia e Canto de Iemanjá. Na voz de Clara Nunes, Conto de Areia e Guerreira; de Marisa Monte, Lenda das Sereias; de Maria Bethânia, Canto de Oxum, Iemanjá e A Bahia Te Espera; de Gal Costa, É d’Oxum; de Gilberto Gil, Eu Vim da Bahia; de Caetano Veloso, Milagres do Povo.
Para ler:
Mar Morto, Jubiabá e Capitães da Areia, de Jorge Amado; Mitologia dos Orixás, de Reginaldo Prandi; Orixás, de Pierre Verger. A Unesco disponibilizou para download o PDF de História Geral da África, obra importante elaborada sob a perspectiva de pesquisadores africanos.
Para assistir:
O Pagador de Promessas (1962), de Anselmo Duarte, ganhador da Palma de Ouro em Cannes, é indispensável para entender o sincretismo religioso na Bahia. Atlântico Negro – Na Rota dos Orixás (1998), de Renato Barbieri, é um documentário que mostra as origens africanas da cultura brasileira.
*Matéria publicada em Bons Fluidos #167 – Fevereiro de 2013